domingo, 23 de setembro de 2012

A QUESTÃO DO EU E DA REALIDADE PSÍQUICA NA PSICANÁLISE


No texto Projeto para uma psicologia científica, (1895), Freud aponta que aparelho psíquico é um aparelho de memória, ou seja, ele registra traços de experiências que lhe servirão de guia para suas ações futuras. (Freud, 1950 [1895] p. 351).
            Para Freud, o desamparo inicial que é experimentado pelos seres humanos provoca uma sensação de desprazer (aumento de excitação) que é sentido no corpo. A intervenção do outro com seus cuidados é que põe termo ao excesso de estímulos experimentado pelo bebê, proporcionando o alívio da tensão. Freud, (1950 [1895] p.370), coloca que a descarga da tensão provoca no bebê uma sensação de prazer que caracteriza a primeira experiência de satisfação. Considera que a intervenção do outro – primeiro objeto de satisfação – provoca uma alteração no mundo externo à medida que, com seu investimento ele recobre o estado de desamparo, possibilitando a sobrevivência desse pequeno ser no mundo. Essas primeiras experiências - desamparo (desprazer) e prazer (representações de desejo) – consistirão o primeiro traço mnêmico impresso no aparelho psíquico.  É esse traço, ou seja, a forma como o pequeno ser vivencia essa experiência que determinará os caminhos que ele trilhará em sua busca por satisfação. A imagem mnêmica da satisfação e o desprazer (excesso de estímulos) causado pelo desamparo farão com que o organismo trabalhe no sentido de restabelecer seu equilíbrio (homeostase). O bebê então, diante da impossibilidade de reviver a satisfação inicialmente experimentada, a reproduz em um jogo de alucinações. No Projeto Freud chama esse processo de modo primário de funcionamento do aparelho psíquico, onde o prazer é auto-erótico. (Freud, 1950 [1895]).
Ainda no Projeto Freud afirma que o eu surge como resultado da operação de ligação entre as representações de desejo derivadas da primeira experiência de prazer, que ele chama de idéias e o desprazer, também chamado de afeto. Aponta que o eu seria a instancia psíquica responsável pelo processo de inibição dos processos primários, tendo que regular as vias de escoamento da energia psíquica, direcionando-as para as percepções (representações de palavra) e não para as representações de desejo. (Freud, 1950 [1895] p. 375-377). Em última instancia, cabe ao eu a tarefa de fazer a distinção entre os traços mnêmicos (memória, representações de desejo) e as percepções, entre mundo interno e mundo externo, o que Freud chamou de teste de realidade. O teste de realidade tem a função de estabelecer a distinção entre o que é uma alucinação de desejo e o que é uma percepção, sendo que é essa função do eu que garantiria a existência do sujeito no mundo. (Freud, 1950 [1895] p.377).
Ao inibir o fluxo de energia, desviando-a para as percepções (representações de palavra), o eu impede a satisfação alucinatória do desejo e institui o princípio de realidade, também chamado de processo secundário de funcionamento do aparelho psíquico. O eu, portanto, tem que inibir o investimento no objeto promovendo um adiamento da descarga até que as indicações de realidade proveniente das percepções sejam representadas pelo aparelho psíquico. Para que essa operação seja efetuada é necessário que o eu seja capaz de lidar com o excesso de estímulos, o que Lacan chama de real.
Por sua parte, Lacan considera que é a entrada no universo da linguagem e, conseqüente no mundo simbólico, que permitirá que o eu seja capaz de subjugar as representações de imagens às categorias de linguagem, instituindo o princípio de realidade.
            No Seminário sobre A ética da psicanálise, Lacan, (1959-60) afirma que o princípio de realidade – operação agenciada pelo eu - faz muito mais do que simplesmente promover o controle das excitações. Ele promove também uma retificação, naquilo que seria a tendência original do aparelho psíquico, ou seja, a descarga via alucinação, opondo-se a ela. Por outro lado, cabe ao princípio de realidade a tarefa de guiar o sujeito para que ele chegue a uma ação possível, através do teste de realidade. (Lacan, 1959 p.40-42).
Lacan indica que os processos de pensamento são governados pelo princípio de realidade, mas os caminhos que ele trilha são determinados pelo inconsciente, ou seja, pelo princípio do prazer, e que estes só se tornam conhecidos pelo sujeito à medida que ele os expressa em palavras, tal como indica:

O princípio de realidade governa o que ocorre no nível do pensamento, mas é apenas na medida em que do pensamento retorna alguma coisa que, na experiência humana, ocorre ser articulada em palavras, que ele pode, como princípio do pensamento, vir à consciência do sujeito, no consciente. (Lacan, 1959-60 p. 45).

            Lacan, assim como Freud, salienta que é o princípio do prazer quem governa a subjetividade humana, pois a percepção pode estar vinculada tanto ao princípio do prazer e à atividade alucinatória quanto à atividade de pensamento, e isto, diz ele, é o que Freud chamou de realidade psíquica. A realidade psíquica, portanto, comporta de um lado os processos de ficção do desejo (registro imaginário) e de outro os processos de pensamento cuja função seria a busca e o reconhecimento do objeto, o que Freud chamou de reencontro com o objeto. (Lacan, 1959-60 p. 46).
            Considera que os processos de pensamento só se tornam conscientes à medida que o sujeito consegue articulá-los em palavras. A fala salienta Lacan, é o que permite que o sujeito articule seus pensamentos introduzindo neles certa ordem. À medida que o sujeito fala a estrutura significante interpõe-se entre a percepção e a consciência permitindo que o inconsciente (princípio do prazer) poça intervir revelando o encaminhamento do desejo do sujeito. Dessa forma Lacan nos revela a importância da linguagem na constituição do sujeito.  (Lacan, 1959-60 p. 63; 78).
Para Lacan, o sujeito é regido pelas leis do simbólico. A ordem simbólica pré-existe à sua constituição o que destaca a dependência do falante aos significantes que vem do Outro. Entretanto a posição do sujeito no mundo simbólico depende da simbolização da realidade objetiva, ou seja, da falta que está inscrita no Outro. A forma como o eu lida com a falta do objeto é que vai indicar os traços estruturais do sujeito (Lacan, 1954 p.255).
            Essa questão foi abordada por Freud, (1911), no artigo “Formulações sobre os dois princípios do acontecer psíquico” onde afirma que o eu, em alguns momentos, encontra dificuldade em conciliar as exigências feitas pela pulsão com a realidade intolerável, e que por isso tende a afastar-se dela. Desta forma, o eu na impossibilidade de satisfazer essas exigências realiza uma alteração na realidade, substituindo-a por outra que se adapte aos seus desejos. Destaca que na neurose o sujeito rejeita um fragmento da realidade indesejável, ao mesmo tempo em que promove o recalque das pulsões e substitui a realidade indesejável por outra mais agradável através da atividade do fantasiar. O neurótico busca realizar através da fantasia a satisfação do desejo.
Por outro lado, na psicose, o sujeito rejeita a realidade intolerável como um todo, ao mesmo tempo em que se afasta dela substituindo-a por uma nova realidade através do delírio. O delírio, segundo Freud, é um trabalho psíquico que permite o recobrimento daquilo que é impossível de ser simbolizado na realidade. (Freud, 1924).
            Lacan, por sua parte, considera que é com o real da castração, da falta do objeto, aquilo com que o sujeito tem que lidar. No Seminário 1 - Os escritos técnicos de Freud, (1953-54), destaca que os registros imaginário e simbólico têm a função de cobrir o real que marca a ausência total de sentido e que representa o traumático, ou seja, um excesso pulsional irredutível e impossível de simbolizar. Pode-se afirmar que a constituição do mundo simbólico é que vai garantir ao sujeito um acesso ao mundo real mediado pela imagem e pela palavra.
            Em síntese, pode-se afirmar que a realidade psíquica é fruto de um processo de simbolização da realidade objetiva, ou seja, dos objetos que são faltosos desde as origens do sujeito.


Referências

FREUD, S. Projeto para uma psicologia científica. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
__________ (1911) Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental. Vol. XII.
 _________ . (1924) A perda da realidade na neurose e na psicose. Vol. XIX.
LACAN, J. (1953-54) O Seminário livro 1 Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.
LACAN, J. (1959-60) O Seminário livro 7 A Ética da Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.