Joana Souza
A palavra trauma pertence ao campo médico e se
refere ao choque responsável por provocar uma lesão no corpo. Entretanto, esse
termo foi apropriado pela psicanálise, passando a abranger também as lesões
causadas ao psiquismo. Podemos ver que num primeiro momento, Freud relacionou o
trauma com o estado de desamparo ou impotência vivenciado pelo ser humano no
momento do nascimento. Concebe a chegada do bebê ao mundo como sendo
traumática, tendo em vista a mudança brusca de ambiente vivenciada no momento
do nascimento, quando o infans é
invadido por estímulos de toda ordem (auditiva, tátil, visual, gustativa,
invasão dos pulmões pelo ar), etc. Freud entende que o nascimento é o primeiro
trauma vivenciado pelo ser humano, momento de vivência do desamparado que dará
origem ao afeto da angústia. (FREUD, 1926).
O trauma original, é o momento de encontro com aquilo que é impossível
de ser representado, encontro com algo que é inassimilável para o sujeito. O
trauma é o encontro com o real. (LACAN, 1962-63).
Entretanto, a teoria freudiana sobre
o trauma não está referida apenas ao choque inicial que é característico da
entrada do sujeito no universo humano. Em outro momento, o trauma foi referido
em sua relação com a teoria da sedução, criada por Freud na tentativa de
delimitar a origem dos processos patológicos presente na histeria.
Inicialmente, Freud acreditava que o sintoma histérico estava diretamente
relacionado à sedução sofrida na infância por parte de um adulto ou mesmo por
uma criança mais velha. Essa hipótese
surgiu a partir dos relatos de lembranças
infantis onde a presença de um sedutor quase sempre aparecia. Nesse momento,
Freud pensa que a neurose é desencadeada pelas experiências sexuais precoces fomentadas
por um sedutor na infância. Tais experiências de sedução vividas de forma
passiva pela criança assumiriam um caráter traumático que, por sua vez
desencadeariam os mais diversos sintomas neuróticos. Vejamos o que Freud afirma
no texto A hereditariedade e a etiologia
das neuroses de 1896:
Percorrendo
retrospectivamente o passado do paciente, passo a passo, e sempre guiado pelo
encadeamento orgânico dos sintomas e das lembranças e representações
despertadas, atingi finalmente o ponto de partida do processo patológico; e fui
obrigado a verificar que, no fundo, a mesma coisa estava presente em todos os
casos submetidos à análise - a ação de um agente que deve ser aceito como causa
específica da histeria. Esse agente é, de fato, uma lembrança relacionada à
vida sexual, mas que apresenta duas características de máxima importância. O
evento do qual o sujeito reteve uma lembrança inconsciente é uma experiência
precoce de relações sexuais com excitação real dos órgãos genitais, resultante
de abuso sexual cometido por outra pessoa; e o período da vida em
que ocorre esse evento fatal é a infância - até a idade de 8 ou 10 anos,
antes que a criança tenha atingido a maturidade sexual. Uma experiência
sexual passiva antes da puberdade: eis, portanto, a etiologia específica da
histeria. (FREUD, 1896 [2006] p. 151).
Freud estabelece uma
correspondência entre o abuso sexual e as experiências sexuais infantis,
indicando que essas experiências serviriam de pano de fundo para a histeria.
Porém, tempos depois coloca em dúvida o fato de existirem tantos pais perversos.
Em uma carta enviada a Fliess em 14 de agosto de 1897 (carta 70) afirma já não
acreditar mais em sua “neurótica”. Introduz nesse momento a ideia de que uma
fantasia investida de afeto equivaleria no inconsciente, à verdade que se
tornaria uma realidade para o sujeito.
A partir desse momento, as experiências reais passam
para um segundo plano e o que vigora é a noção de que a realidade é uma
construção psíquica feita pelo sujeito que estaria diretamente vinculada ao
desejo inconsciente. Assim, a teoria da sedução é substituída pela teoria da
fantasia de sedução. Nesse momento, como afirma Coutinho Jorge, acontece uma “passagem
fundamental” na obra freudiana destacada por Lacan que é a concepção do “trauma
como contingência”, ou seja, “não se trata de que tenha havido trauma sexual na
infância do sujeito, mas sim de que a estrutura da sexualidade é, ela própria,
sejam quais forem os acontecimentos históricos, essencialmente traumática”.
(COUTINHO JORGE, 2008 p. 21).
O psicanalista húngaro Sándor Ferenczi,
contemporâneo de Freud, dedicou grande parte de sua vida à investigação do
trauma. Ele tece uma crítica a Freud, quando chama a atenção para o fato de que
a passagem da teoria do trauma de sedução para a teoria da fantasia comporta o
perigo de não se ter em consideração os dados provenientes da realidade
objetiva, que é a realidade inegável dos fatos ocorridos para além do campo da
fantasia, e a desconsideração das impressões psíquicas oriundas das
experiências de abuso vividas na infância. (FERENCZI,1933 p. 111). É possível perceber, que a teoria do trauma em
Ferenczi é bem distinta do quê a que fora proposta por Freud. (GONDAR, 2017).
Assim, identificamos duas tendências
no que se refere à investigação do trauma. Uma que privilegia os eventos
traumáticos e sua “realidade”, e outra que dá preferência à atividade
fantasística tendo como referência a realidade psíquica enquanto operadora do
evento traumático em questão.
Um século após Freud formular suas teorias a
respeito da sexualidade infantil, a
questão do incesto ou do abuso sexual infantil praticado no seio das famílias
tornou-se um fato inegável que a sociedade rechaça e abomina intensamente. No
Brasil, o estatuto da criança e do adolescente (ECA), foi criado como resposta
à violência praticada por adultos contra sujeitos que se encontram em situação
de vulnerabilidade física e psicológica. Por mais que saibamos que a
sexualidade infantil, tal como Freud a concebeu é um fato inegável, não podemos
deixar de nos manifestar quanto caráter perverso presente no adulto sedutor que
transforma o corpo infantil em um objeto-fetiche.
O psicanalista na clínica deve estar
sensível ao fato de que nem todos os relatos de abuso devem ser tomados como
sendo da ordem de uma fantasia sexual infantil. É verdade que na relação
familiar de dependência em que se encontram as crianças - com seus pais, mães,
irmãos mais velhos, avós, tios e primos – nem sempre é possível para elas ter discernimento a respeito do que acontece
quando são tocados, manuseados ou beijados por algum desses familiares (PIZÁ, 2010
p.20-21).
Quase sempre o abuso é mantido em
segredo dentro do seio familiar e muitas mães se calam diante do fato, deixando
de exercer o dever de proteger a criança do adulto abusador. Do lado da
criança, a impossibilidade de falar sobre os fatos tornam o incesto uma espécie
de “violência silenciosa” como aponta Graça Pizá no livro Afetos Secretos, onde registra sua experiência no atendimento de
crianças vítimas de abuso sexual. Como afirma:
O silencio imposto é a impossibilidade
de a criança articular o impacto da experiencia sexual e a necessidade da sua
denúncia; é o impedimento da palavra e os sentimentos dele decorrentes; é o
silêncio capsular, fechado, criptado, cujos códigos de acesso impenetráveis,
mobilizando intensa angústia; o aprisionamento, a dominação e a exibição de
força mantêm o silêncio imposto sob o manto da lealdade, da confiança e da
discrição. (PIZÁ, 2010 p. 51).
A criança não consegue
reconhecer a aproximação de um adulto sedutor como sendo perigosa ou como sendo
uma ameaça. Mesmo portando uma intuição de que algo estranho está acontecendo,
ela se recusa a ver o adulto sedutor como um perigo real e, desse modo,
rende-se ao seu desejo. A sedução exercida pelo adulto captura o corpo da
criança tornando-a prisioneira de seu próprio gozo, o que faz com ela se sinta
culpada pelo abuso. Paradoxalmente, ela guarda dentro de si o medo de perder o
amor daquele que diz que a ama fazendo com que ela mergulhe numa angústia avassaladora
que a paralisa.
O silencio que se estabelece em
torno da questão do abuso sexual de crianças por familiares, quase sempre é
oriundo de um pacto familiar estabelecido para manter em segredo o fato, o que
acaba por fazer com que a criança abusada seja sacrificada em prol da
manutenção do status familiar. O silencio, bem como o não reconhecimento por
parte do adulto da situação abusiva, constitui o que Ferenczi chamou de
desmentido.
O desmentido (Verleugnung)
é um termo alemão utilizado por Freud para caracterizar a existência de uma
divisão no psiquismo que se dá entre o saber e o não-querer-saber. Por esse
viés, o desmentido revela a existência de duas correntes opostas, uma que sabe
que existe uma lei que estabelece proibições e normas responsáveis por reger a
sociedade, e outra que, mesmo sabendo que existem limites a serem obedecidos,
os desmente, comportando-se como se não existissem. Freud utilizou esse termo
para se referir às duas formas em que a perversão se apresenta: uma que é
inerente ao exercício da sexualidade e que se manifesta em todos os sujeitos, e
outra referida a uma forma peculiar de estruturação do psiquismo, onde há a
predominância de atos perversos.
A estrutura perversa tal como foi cunhada por Freud,
se caracteriza pela eleição de um fetiche como objeto de gozo, o que me faz
pensar que nos casos de pedofilia a criança é tomada pelo perverso como um
fetiche, como um objeto de gozo apenas.
O uso que Ferenczi faz desse termo
difere do que Freud propôs. Como afirma Gondar (2017), o desmentido para
Ferenczi diz respeito à negação do fato ocorrido por parte do outro. Melhor
dizendo, o desmentido ocorre quando a situação de abuso vem à tona no seio
familiar e o adulto responsável pela criança não reconhece, ou seja, desmente o
fato e age como se não houvesse ocorrido. O silêncio, a falta de explicações
claras e a negativa do adulto em escutar a criança é que constitui o trauma
responsável pela desestruturação do psiquismo, como afirma Gondar:
Para que um trauma seja desestruturante
ou invalidante, é preciso que a experiência de violência física se acrescente
uma outra experiência; ela ocorre quando a criança, sem conseguir dar sentido
ao que aconteceu, procura um outro adulto na família ou em seu entorno que lhe
proporcione alguma explicação sobre a violência que ela sofreu, alguma
referência sobre o que está acontecendo. Esse segundo adulto não quer ou não
suporta o que a criança lhe traz, não ouve o seu relato, não percebe o seu
sofrimento. Ele lhe diz que nada aconteceu, ou então que ela está mentindo ou
imaginando coisas. (GONDAR, 2017)
Essa perspectiva será tratada por Axel Honneth (2003),
um dos criadores da teoria do reconhecimento. Honneth, influenciado por Hegel,
mostra como a ausência de reconhecimento se constitui para os sujeitos que passaram
por situações de desrespeito, o fator traumático propriamente dito. Nessa
perspectiva, o trauma surge num a
posteriori do evento e está relacionado com o destino que é dado ao fato
ocorrido. Para esse autor, o desrespeito e a ausência de reconhecimento são
fatores que podem causar graves lesões ao psiquismo do sujeito, tento em vista
o fator elementar de rebaixamento e de violação de direitos que essas atitudes comportam.
Para Honneth, o desrespeito pode acontecer tanto na ordem da integridade
corporal, quanto na subtração dos direitos fundamentais responsáveis por
conferir um lugar para o sujeito no tecido social. Honneth afirma que:
(...) aquelas formas de maus-tratos
práticos, em que são tiradas violentamente de um ser humano as possibilidades
da livre disposição sobre o corpo, representam a espécie mais elementar de
rebaixamento pessoal. A razão disso é que toda tentativa de se apoderar do
corpo de uma pessoa, empreendida contra sua vontade e com qualquer intenção que
seja, provoca um grau de humilhação que interfere destrutivamente na
auto-relação prática de um ser humano, com mais profundidade do que de outras
formas de desrespeito; (HONNETH, 2003 p. 215).
No
do caso do abuso sexual praticado contra uma criança, o desrespeito acontece
tanto no que concerne à violação do corpo, como também em seu direito
fundamental de ter sua infância preservada. Quando isso não acontece e a criança
é exposta a situações abusivas, uma enorme carga de afeto é colocada em ação na
forma do medo, do terror e da angústia, que são expressões do sofrimento
psíquico que a acomete. Cabe ao adulto proteger a criança de tais violações,
garantindo-lhe as condições necessárias para seu crescimento e amadurecimento
sexual. Mas, devemos estar atentos ao fato de que na maioria dos casos o abuso
é praticado por um membro da própria família que, ao invés de proteger a
criança, acaba por violentá-la. Tal fato faz com que a criança, muitas vezes,
não consiga estabelecer uma distinção clara entre amor e violência. A criança não é capaz de dar sentido à
violência que ele sofreu ficando imersa no desamparo que se apresenta na forma
de angústia.
A condição básica para o exercício
da sexualidade é que haja acordo entre as partes envolvidas para que ambas
desfrutem mutuamente do ato sexual. No caso de relacionamentos entre adultos e
crianças o que há é uma desigualdade, já que o adulto exerce sua força e seu
poder de coerção o que caracteriza o abuso sexual como tal.
Em sua prática clínica o
psicanalista não deve pautar-se em valores morais, mas sim na ética do desejo
inconsciente. Assim, é necessário que o psicanalista, diante da evidência de
que na raiz de toda manifestação da sexualidade humana o que se presentifica é
a sexualidade infantil enquanto uma disposição originária da pulsão sexual, não
seja insensível ao fato de que a significação traumática que é dada na idade
adulta às experiências sexuais vividas na infância são trazidas para a análise
com uma enorme carga efetiva.
Cabe ao psicanalista escutar a dor, mesmo que o que
esteja em questão sejam as determinações inconscientes, determinações estas que
denunciam a responsabilidade do sujeito frente ao gozo e ao desejo. O relato
das lembranças, por mais que estejam sob o véu da fantasia, são trazidos com
intenso sofrimento, sentimento de revolta em relação à mãe e demais familiares
que, mesmo sabendo dos fatos, nada fizeram para evitá-lo. Cabe então ao
psicanalista viabilizar a simbolização
da experiência traumática e a criação de novos vínculos afetivos pautados no
desejo.
Referências
FERENCZI,
S. (1933). Reflexões sobre o trauma.
Obras completas, Psicanálise IV.São Paulo: Martins Fontes, 1992.
FREUD,
Sigmund. A hereditariedade e a etiologia
das neuroses. Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud Vol. III. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
FREUD,
Sigmund. Estudos sobre histeria. Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud Vol. II. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
FREUD,
Sigmund. Carta 70. Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud Vol.
I. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
GONDAR, J;
REIS, E. S. O desmentido e a zona
cinzenta. In: Com Ferenczi, Clinica, subjetivação, política. Rio de
Janeiro; 7 letras, 2017.
HONNETH,
A. Luta por reconhecimento. A gramática
moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2003.
LACAN,
Jacques. O Seminário- livro 20 - Mais,
ainda, 1972-1973. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.