Em
seu texto “Sobre o narcisismo”, (1914 pg.89), Freud destaca que o estudo das
psicoses poderia proporcionar um avanço para a compreensão interna da
psicologia do eu. A tese freudiana apresentada nesse texto diz que nas psicoses
ocorreria uma regressão da libido ao eu, ideia defendida já no início de suas
investigações clínicas, e que foi registrada, dentre outros textos, em uma carta
endereçada a Fliess em 1899 (carta 125) e na análise do caso Schreber
(1912). No texto citado, Freud opõe a
libido do eu à libido do objeto, indicando a necessidade de um equilíbrio na
distribuição da pulsão sexual. Nesse sentido, indica que o momento da eclosão
da psicose seria aquele em que o excesso de investimento da libido no eu teria como conseqüência um rompimento
com a realidade. Freud considerava que o cerne da questão da psicose estaria na
incapacidade do eu em lidar com as
exigências feitas pelo mundo externo. Na verdade, no momento da crise psicótica
o que falha é justamente a capacidade de o eu fazer o teste de realidade, ou
seja, de distinguir entre o que é uma alucinação de desejo e o que é uma
percepção. Em outras palavras, o eu no momento da crise, não consegue inibir o
processo primário de funcionamento do psiquismo que rege o inconsciente. O
teste de realidade é uma função do eu que garantiria a existência do sujeito no
mundo.
Podemos
notar que a questão da psicose foi abordada por Freud centrando-se,
precisamente, na perda da realidade. No
texto “A perda da realidade na neurose e na psicose”, (1924), enfatiza que
existe uma impossibilidade de acesso direto a realidade, pois, algo ali, sempre
se perde. Com isso considera que mais do que a perda da realidade o que
interessa seria delinear de que forma o sujeito substitui a realidade. Destaca
que na neurose é a fantasia que estrutura o sujeito possibilitando o acesso a
alguma forma de prazer parcial. Já no
caso da psicose, diz Freud, o eu rejeita (Verwerfung)
a realidade intolerável como um todo, ao mesmo tempo em que se afasta dela
substituindo-a, em alguns casos, por uma nova realidade através do delírio. O
delírio, para Freud, é um trabalho psíquico que permite o recobrimento daquilo
que é impossível de ser simbolizado na realidade.
O trabalho de reconfiguração da
realidade é operado a partir de processos psíquicos formados a partir do
contato com a realidade, ou seja, sobre os traços de memória, as representações
e os juízos, por meio dos quais a realidade se fazia representar no mundo
psíquico. Essas percepções estão sempre se modificando, assim para a psicose,
coloca-se a tarefa de providenciar percepções que estejam em sintonia com a
nova realidade, o que é conseguido de forma radical nos casos de paranóia, pela
via do delírio.
Lacan, (1955-56 pg. 170), retoma a questão
das estruturas freudianas, para indicar que neurose e psicose são estruturas
psíquicas cuja constituição se dá em função da inscrição ou não inscrição do
significante Nome-do-pai. Dessa forma, entende-se que não se pode falar de
neurose ou psicose sem uma referencia ao Édipo, pois ele é o divisor de águas
entre essas duas estruturas. Por outro lado, podemos notar que desde o início,
o interesse de Lacan pela psicose centra-se na questão das relações do sujeito
com o campo simbólico, ou seja, como o sujeito apropria-se da linguagem, fazendo
uso do significante da falta, mencionado anteriormente.
Seguindo
o caminho indicado por Freud, Lacan retoma a questão da constituição imaginaria
do eu , para delimitar sua relação
com o desencadeamento da psicose. Indica que o retorno da libido ao eu provoca uma inflação do registro
imaginário, cuja conseqüência é o rompimento com a realidade (Lacan, 1955-56
pg. 174). Entretanto, a questão sublinhada por Lacan, é que no momento da crise
o sujeito não consegue se apropriar da linguagem, no sentido de estabelecer uma
barreira contra o real que o invade.
Em outros termos, é o encontro com o real da castração, ou seja, da
inexistência de um objeto obsoluto do desejo, aquilo que o sujeito é incapaz de
simbolizar (Lacan, 1955-56 p. 105; 244).
A noção de rejeição (Verwerfung) da realidade, delineada por Freud, será retomada por
Lacan no seminário sobre as psicoses, a despeito de suas elaborações sobre o
mecanismo defensivo da psicose. Lacan utilizará o termo francês forclusion (foraclusão) como homólogo à
expressão freudiana Verwerfung
(rejeição). O termo Verwerfung,
segundo Lacan, diz respeito a “a rejeição
de um significante primordial em trevas exteriores, significante que faltará
desde então nesse nível” (Lacan, 1955-56 pg. 178). A partir da análise do
texto freudiano “A denegação”, indica que a realidade se estrutura para o
sujeito em “termos significantes”. Vai, posteriormente,
relacionar a psicose à rejeição (Verwerfung)
nas origens do sujeito, de um significante primordial, o significante Nome-do-pai.
A foraclusão, para Lacan, diz
respeito à abolição da lei simbólica, o que indica que na travessia do Édipo
não houve a castração simbólica, não havendo, portanto, possibilidade de a
significação fálica advir.
Em outros termos, entende-se que a
crise psicótica revela o momento em que as referencias identificatórias que
estruturam o sujeito falham. A
dissolução do registro imaginário exige que o sujeito empreenda um verdadeiro
remanejamento de seu mundo, o que é viabilizado pelo delírio. Entretanto, a
produção da metáfora delirante por parte do sujeito psicótico mostra a
insistência da ordem simbólica. É, portanto, uma forma de estabilização, ou
seja, um modo de lidar com o real, possibilitando que o sujeito volte a se
relacionar com os objetos mesmo que de uma forma persecutória. Com essa
indicação, Lacan sublinha que o sujeito psicótico é capaz de criar saídas
possíveis para o encontro traumático (Lacan, 1955-56 pg. 107-108).
Essas questões serão retomadas posteriormente
no seminário 5 – As formações do inconsciente – onde Lacan, (1957-58), explica
que o significante Nome-do-pai funciona como um “pai simbólico”, ou seja, ele é
um significante que introduz a lei, no sentido de que o objeto do desejo foi
interditado para o sujeito desde as suas origens. Afirma que na neurose, o
recalque é que permite que a cadeia significante continue a se deslocar. No
caso da psicose, entretanto, é outra coisa, é Verwerfung, aponta Lacan:
Pode
haver, na cadeia dos significantes, um significante ou uma letra que falta, que
sempre falta na tipografia. O espaço do significante, o espaço do inconsciente,
é realmente um espaço tipográfico, que é preciso tratar de definir como se
constituindo de acordo com linhas e pequenos quadrados e corresponde a lei topológicas.
Pode faltar alguma coisa numa cadeia dos significantes. Vocês precisam
compreender a importância da falta desse significante especial do qual acabo de
falar, o Nome-do-pai, no que ele funda como tal o fato de existir a lei, ou
seja, a articulação numa certa ordem do significante – complexo de Édipo, ou
lei do Édipo, ou lei da proibição da mãe. Ele é o significante que significa
que, no interior desse significante, o significante existe. (Lacan, 1957-58 pg.
153).
A partir dessas considerações, concluímos que nos primeiros anos de
seu percurso, Lacan relaciona a eclosão da psicose à ausência de inscrição do significante
Nome-do-Pai, o significante primordial que estrutura o sujeito e que o insere
na lei. Entretanto, a noção de
Nome-do-pai adquirirá, no rastro da obra lacaniana, novos contornos à medida
que suas pesquisas a respeito das psicoses avançam na direção de tentar
estabelecer uma direção clínica possível para o tratamento das psicoses. Essas
questões não serão abordadas aqui, mas talvez, em outro momento, passamos
avançar nossa pesquisa nessa direção.
Referencias
FREUD, S.
(1914) Sobre o narcisismo:
uma introdução. Edição
Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XIV. Rio de
Janeiro: Imago, 2006.
_________
(1921) Psicologia de grupo e análise do
eu. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol.
XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
_________
(1924) A perda da realidade na neurose e
na psicose. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund
Freud. Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
LACAN, J.
(1955-56) O Seminário – livro 3 – As
psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
LACAN,
J. (1957-58) O Seminário livro 5 As formações
do inconsciente. Rio de
Janeiro: Zahar, 1999.
LACAN,
J. (1959-60) O Seminário livro 7 A Ética
da Psicanálise. Rio de
Janeiro: Zahar, 2008.
LACAN,
J. (1961-62) O Seminário livro 9 La identificación. Edição eletrônica das
Obras de Jacques Lacan em espanhol.
LEITE,
Sonia. A Verwerfung e algumas
soluções possíveis. No prelo.
QUINET,
Antonio. Teoria e clínica da psicose. Rio de Janeiro: Forense Universitária.
2011.
SOLER,
Colette. O inconsciente a céu aberto na
psicose. Rio de Janeiro: Zahar. 2007.
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