quinta-feira, 7 de junho de 2012

O DESEJO DO ANALISTA E A INSTITUIÇÃO DE SAÚDE MENTAL



            Freud no artigo “Linhas de progresso da terapia analítica” escrito em 1919, já previa a ampliação do uso da psicanálise em instituições de saúde pública, onde as camadas mais pobres da população teriam acesso ao tratamento psicanalítico.
            Tal como previsto por Freud, testemunhamos na atualidade o deslocamento do psicanalista dos consultórios privados para o espaço público, representado pelos hospitais gerais, ambulatórios e instituições de saúde mental. A inserção da psicanálise em tais espaços marca um momento de reaproximação entre o campo médico e o campo psicanalítico, ao mesmo tempo em que levanta importantes questões que nos fazem pensar sobre o lugar ocupado pelo analista nessas instituições e seu posicionamento em relação aos ideais pertinentes ao campo médico-psiquiátrico.
É preciso especificar que a psicanálise não é totalmente exterior ao campo médico, pois suas origens se deram no mesmo solo da medicina.  No entanto, apesar de ser derivada da medicina, a psicanálise não se constitui como um ramo especializado da mesma, tal como indica Elia ao afirmar que “... a psicanálise se constitui como um saber inteiramente derivado, porém não integrante do campo científico, porquanto resulta de uma operação de subversão desse campo pelo viés do sujeito...”
            O significante subversão utilizado por Elia aponta para o fato de que a psicanálise, mesmo sendo derivada do campo médico não se submete ao mesmo, ou seja, não está atrelada aos ideais que sustentam a prática médica.  O analista, diferentemente do médico, não se coloca no lugar de mestre detentor de um saber universal. O analista, orientado pela ética da psicanálise, opera a partir de um não saber ocupando o lugar de objeto a para o paciente, tal como indica Lacan no Seminário X A angústia.
            Entretanto, é preciso nos interrogar se a presença do analista em um terreno marcado pela hegemonia do saber médico-psiquátrico, não ocorreria no risco de um retorno às praticas clínicas pautadas em uma lógica humanitária, tal como preconiza a reforma psiquiátrica.
            A reforma psiquiátrica marca um importante avanço em relação ao tratamento da doença mental ao substituir o antigo sistema asilar, por um modelo que, idealmente, devolveu ao louco o status de cidadão. Um novo paradigma surge nesses novos espaços de tratamento da doença mental, onde o eixo norteador se liga ao ideal de humanização do atendimento e na garantia dos direitos sociais do doente, tais como, o trabalho, a moradia, o lazer, etc..
            A ética da psicanálise, por sua vez, não está forjada segundo os ideais de conduta moral ou de felicidade. A ética psicanalítica segundo Lacan deve estar centrada no desejo inconsciente, o que implica no abandono de qualquer promessa de felicidade.
Lacan afirma que a felicidade se tornou um fator de política, fortalecendo a idéia imaginária de que o saber possa se constituir como universal, como totalidade, promovendo a ilusão de uma felicidade plena. Em última instância, caberia aos governantes satisfazer as necessidades de todos os indivíduos, garantindo-lhes, desta forma, a felicidade. Lacan afirma que essa “moral é uma moral do mestre... vinculada a uma ordem dos poderes”, que não deve ser desprezada, contudo, não é disso de que se trata o campo de investigação da psicanálise. Se em Aristóteles há uma disciplina da felicidade, diz Lacan, nada há de parecido na análise.  O que está em questão para a ética da psicanálise é o desejo.
Por essa ótica, sustentar a ética da psicanálise na instituição de saúde mental seria para o analista um desafio constante. Tal como afirma Lacan, seria impossível para o analista não sentir uma certa angústia, ao ocupar na instituição uma posição de não saber, sustentando uma postura que permita ao sujeito que busca tratamento a possibilidade de construir um saber sobre seu mal estar. O que não significa que o analista trabalhará em um sentido contrário à política da instituição, mas sim que diante daquilo que é visto como universal no campo político, o analista trabalharia na direção de viabilizar a emergência da particularidade de cada um, não abrindo mão da ética psicanalítica.
Para inserir a psicanálise num campo como o da saúde mental - marcado por políticas que impedem o advento do sujeito - o analista, à semelhança de Freud, deve orientar-se a partir de seu desejo. O desejo do analista seria para Lacan, o dispositivo que capacita o analista a insistir, a não recuar diante dos impasses suscitados pelas políticas de saúde e pela hegemonia do discurso médico-psiquiátrico na saúde mental garantido a verdadeira inserção da psicanálise nesse campo.
Se o desejo de Freud possibilitou a construção do campo psicanalítico – tal como consideramos no início deste trabalho – somente a manutenção desse desejo torna possível a cada analista sustentar a práxis analítica. O desejo do analista então seria um corresponde do desejo freudiano que possibilita ao analista em formação reviver, a seu modo, a experiência singular transmitida por Freud de desconstrução de valores e ideais socialmente construídos. O que Freud nos ensina com sua experiência é que o ser do analista não é de nenhuma maneira, exterior ao campo psicanalítico, por isso a história da psicanálise está entrelaçada com a história de seu criador.
Evidencia-se então, que o analista ao se constituir como herdeiro do desejo freudiano, deve estabelecer uma transferência com a psicanálise, onde seu próprio ser é colocado em jogo dia a após dia.
A perspectiva ética da formação do analista aponta que o desejo do analista é uma função que se constitui a partir da análise do próprio analista, de sua experiência com o inconsciente em sua própria análise. Portanto, esse desejo é sem objeto, por que não visa a nenhuma satisfação pessoal ou narcísica. É uma função que faz funcionar o trabalho analítico, pois, ao ocupar um lugar vazio, o analista permite que o desejo do analisante possa aparecer.
A angústia quando surge do lado do analista é um sinal que indica a presença de um desejo inconsciente que poderá impedir o percurso analítico. Lacan adverte que esse é um momento crucial, onde o analista deve nodular sua própria angústia, ocupando assim, um lugar de falta para o sujeito, afastando-se de qualquer lógica humanitária e de qualquer idealismo.
Conclui-se, portanto, que o analista deve percorrer um caminho em sua própria analise pessoal para que seja capaz de sustentar a ética da psicanálise tanto no consultório privado, como em instituições de saúde mental, onde diariamente será convocado a dialogar com saberes de outros campos. A inserção da psicanálise em instituições pautadas no modelo médico depende do posicionamento do analista e de seu compromisso com sua formação permanente.


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