Freud no artigo “Linhas de progresso
da terapia analítica” escrito em 1919, já previa a ampliação do uso da
psicanálise em instituições de saúde pública, onde as camadas mais pobres da
população teriam acesso ao tratamento psicanalítico.
Tal como previsto por Freud, testemunhamos
na atualidade o deslocamento do psicanalista dos consultórios privados para o
espaço público, representado pelos hospitais gerais, ambulatórios e
instituições de saúde mental. A inserção da psicanálise em tais espaços marca
um momento de reaproximação entre o campo médico e o campo psicanalítico, ao
mesmo tempo em que levanta importantes questões que nos fazem pensar sobre o
lugar ocupado pelo analista nessas instituições e seu posicionamento em relação
aos ideais pertinentes ao campo médico-psiquiátrico.
É preciso especificar que a psicanálise não é totalmente exterior ao
campo médico, pois suas origens se deram no mesmo solo da medicina. No entanto, apesar de ser derivada da
medicina, a psicanálise não se constitui como um ramo especializado da mesma,
tal como indica Elia ao afirmar que “...
a psicanálise se constitui como um saber inteiramente derivado, porém não
integrante do campo científico, porquanto resulta de uma operação de subversão
desse campo pelo viés do sujeito...”
O significante subversão utilizado
por Elia aponta para o fato de que a psicanálise, mesmo sendo derivada do campo
médico não se submete ao mesmo, ou seja, não está atrelada aos ideais que
sustentam a prática médica. O analista,
diferentemente do médico, não se coloca no lugar de mestre detentor de um saber
universal. O analista, orientado pela ética da psicanálise, opera a partir de
um não saber ocupando o lugar de
objeto a para o paciente, tal como indica Lacan no Seminário X A angústia.
Entretanto,
é preciso nos interrogar se a presença do analista em um terreno marcado pela
hegemonia do saber médico-psiquátrico, não ocorreria no risco de um retorno às
praticas clínicas pautadas em uma lógica humanitária, tal como preconiza a
reforma psiquiátrica.
A reforma psiquiátrica marca um
importante avanço em relação ao tratamento da doença mental ao substituir o
antigo sistema asilar, por um modelo que, idealmente, devolveu ao louco o
status de cidadão. Um novo paradigma surge nesses novos espaços de tratamento
da doença mental, onde o eixo norteador se liga ao ideal de humanização do
atendimento e na garantia dos direitos sociais do doente, tais como, o
trabalho, a moradia, o lazer, etc..
A ética da psicanálise, por sua vez,
não está forjada segundo os ideais de conduta moral ou de felicidade. A ética
psicanalítica segundo Lacan deve estar centrada no desejo inconsciente, o que
implica no abandono de qualquer promessa de felicidade.
Lacan afirma que a felicidade se tornou um fator de
política, fortalecendo a idéia imaginária de que o saber possa se constituir
como universal, como totalidade, promovendo a ilusão de uma felicidade plena. Em
última instância, caberia aos governantes satisfazer as necessidades de todos
os indivíduos, garantindo-lhes, desta forma, a felicidade. Lacan afirma que
essa “moral é uma moral do mestre...
vinculada a uma ordem dos poderes”, que não deve ser desprezada, contudo,
não é disso de que se trata o campo de investigação da psicanálise. Se em Aristóteles há uma disciplina da felicidade, diz
Lacan, nada há de parecido na análise. O que está em
questão para a ética da psicanálise é o desejo.
Por essa ótica, sustentar a ética da psicanálise na instituição de saúde
mental seria para o analista um desafio constante. Tal como afirma Lacan, seria
impossível para o analista não sentir uma
certa angústia, ao ocupar na instituição uma posição de não saber, sustentando uma postura que
permita ao sujeito que busca tratamento a possibilidade de construir um saber
sobre seu mal estar. O que não significa que o analista trabalhará em um
sentido contrário à política da instituição, mas sim que diante daquilo que é
visto como universal no campo político, o analista trabalharia na direção de
viabilizar a emergência da particularidade de cada um, não abrindo mão da ética
psicanalítica.
Para inserir a psicanálise num campo como o da saúde mental - marcado por
políticas que impedem o advento do sujeito - o analista, à semelhança de Freud,
deve orientar-se a partir de seu desejo. O desejo do analista seria para Lacan,
o dispositivo que capacita o analista a insistir, a não recuar diante dos
impasses suscitados pelas políticas de saúde e pela hegemonia do discurso
médico-psiquiátrico na saúde mental garantido a verdadeira inserção da
psicanálise nesse campo.
Se o desejo de Freud possibilitou a construção do campo psicanalítico –
tal como consideramos no início deste trabalho – somente a manutenção desse
desejo torna possível a cada analista sustentar a práxis analítica. O desejo do analista então seria um corresponde
do desejo freudiano que possibilita ao analista em formação reviver, a seu
modo, a experiência singular transmitida por Freud de desconstrução de valores
e ideais socialmente construídos. O que Freud nos ensina com sua experiência é
que o ser do analista não é de nenhuma maneira, exterior ao campo
psicanalítico, por isso a história da psicanálise está entrelaçada com a
história de seu criador.
Evidencia-se então, que o analista ao
se constituir como herdeiro do desejo freudiano, deve estabelecer uma
transferência com a psicanálise, onde seu próprio ser é colocado em jogo dia a
após dia.
A perspectiva ética da
formação do analista aponta que o desejo do analista é uma função que se constitui a partir da análise do próprio analista, de
sua experiência com o inconsciente em sua própria análise. Portanto, esse
desejo é sem objeto, por que não visa
a nenhuma satisfação pessoal ou narcísica. É uma função que faz funcionar o
trabalho analítico, pois, ao ocupar um lugar vazio, o analista permite que o
desejo do analisante possa aparecer.
A angústia quando
surge do lado do analista é um sinal que indica a presença de um desejo
inconsciente que poderá impedir o percurso analítico. Lacan adverte que esse é
um momento crucial, onde o analista deve nodular sua própria angústia, ocupando
assim, um lugar de falta para o
sujeito, afastando-se de qualquer lógica humanitária e de qualquer idealismo.
Conclui-se, portanto,
que o analista deve percorrer um caminho em sua própria analise pessoal para
que seja capaz de sustentar a ética da psicanálise tanto no consultório
privado, como em instituições de saúde mental, onde diariamente será convocado
a dialogar com saberes de outros campos. A inserção da psicanálise em
instituições pautadas no modelo médico depende do posicionamento do analista e
de seu compromisso com sua formação permanente.
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