quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Da Verwerfung de Freud à foraclusão de Lacan


            Em seu texto “Sobre o narcisismo”, (1914 pg.89), Freud destaca que o estudo das psicoses poderia proporcionar um avanço para a compreensão interna da psicologia do eu. A tese freudiana apresentada nesse texto diz que nas psicoses ocorreria uma regressão da libido ao eu, ideia defendida já no início de suas investigações clínicas, e que foi registrada, dentre outros textos, em uma carta endereçada a Fliess em 1899 (carta 125) e na análise do caso Schreber (1912).  No texto citado, Freud opõe a libido do eu à libido do objeto, indicando a necessidade de um equilíbrio na distribuição da pulsão sexual. Nesse sentido, indica que o momento da eclosão da psicose seria aquele em que o excesso de investimento da libido no eu teria como conseqüência um rompimento com a realidade. Freud considerava que o cerne da questão da psicose estaria na incapacidade do eu em lidar com as exigências feitas pelo mundo externo. Na verdade, no momento da crise psicótica o que falha é justamente a capacidade de o eu fazer o teste de realidade, ou seja, de distinguir entre o que é uma alucinação de desejo e o que é uma percepção. Em outras palavras, o eu no momento da crise, não consegue inibir o processo primário de funcionamento do psiquismo que rege o inconsciente. O teste de realidade é uma função do eu que garantiria a existência do sujeito no mundo.
            Podemos notar que a questão da psicose foi abordada por Freud centrando-se, precisamente, na perda da realidade. No texto “A perda da realidade na neurose e na psicose”, (1924), enfatiza que existe uma impossibilidade de acesso direto a realidade, pois, algo ali, sempre se perde. Com isso considera que mais do que a perda da realidade o que interessa seria delinear de que forma o sujeito substitui a realidade. Destaca que na neurose é a fantasia que estrutura o sujeito possibilitando o acesso a alguma forma de prazer parcial.  Já no caso da psicose, diz Freud, o eu rejeita (Verwerfung) a realidade intolerável como um todo, ao mesmo tempo em que se afasta dela substituindo-a, em alguns casos, por uma nova realidade através do delírio. O delírio, para Freud, é um trabalho psíquico que permite o recobrimento daquilo que é impossível de ser simbolizado na realidade.
            O trabalho de reconfiguração da realidade é operado a partir de processos psíquicos formados a partir do contato com a realidade, ou seja, sobre os traços de memória, as representações e os juízos, por meio dos quais a realidade se fazia representar no mundo psíquico. Essas percepções estão sempre se modificando, assim para a psicose, coloca-se a tarefa de providenciar percepções que estejam em sintonia com a nova realidade, o que é conseguido de forma radical nos casos de paranóia, pela via do delírio.
            Lacan, (1955-56 pg. 170), retoma a questão das estruturas freudianas, para indicar que neurose e psicose são estruturas psíquicas cuja constituição se dá em função da inscrição ou não inscrição do significante Nome-do-pai. Dessa forma, entende-se que não se pode falar de neurose ou psicose sem uma referencia ao Édipo, pois ele é o divisor de águas entre essas duas estruturas. Por outro lado, podemos notar que desde o início, o interesse de Lacan pela psicose centra-se na questão das relações do sujeito com o campo simbólico, ou seja, como o sujeito apropria-se da linguagem, fazendo uso do significante da falta, mencionado anteriormente.
            Seguindo o caminho indicado por Freud, Lacan retoma a questão da constituição imaginaria do eu , para delimitar sua relação com o desencadeamento da psicose. Indica que o retorno da libido ao eu provoca uma inflação do registro imaginário, cuja conseqüência é o rompimento com a realidade (Lacan, 1955-56 pg. 174). Entretanto, a questão sublinhada por Lacan, é que no momento da crise o sujeito não consegue se apropriar da linguagem, no sentido de estabelecer uma barreira contra o real que o invade. Em outros termos, é o encontro com o real da castração, ou seja, da inexistência de um objeto obsoluto do desejo, aquilo que o sujeito é incapaz de simbolizar (Lacan, 1955-56 p. 105; 244). 
             A noção de rejeição (Verwerfung) da realidade, delineada por Freud, será retomada por Lacan no seminário sobre as psicoses, a despeito de suas elaborações sobre o mecanismo defensivo da psicose. Lacan utilizará o termo francês forclusion (foraclusão) como homólogo à expressão freudiana Verwerfung (rejeição). O termo Verwerfung, segundo Lacan, diz respeito a “a rejeição de um significante primordial em trevas exteriores, significante que faltará desde então nesse nível” (Lacan, 1955-56 pg. 178). A partir da análise do texto freudiano “A denegação”, indica que a realidade se estrutura para o sujeito em “termos significantes”.  Vai, posteriormente, relacionar a psicose à rejeição (Verwerfung) nas origens do sujeito, de um significante primordial, o significante Nome-do-pai. A foraclusão, para Lacan, diz respeito à abolição da lei simbólica, o que indica que na travessia do Édipo não houve a castração simbólica, não havendo, portanto, possibilidade de a significação fálica advir.
            Em outros termos, entende-se que a crise psicótica revela o momento em que as referencias identificatórias que estruturam o sujeito falham.  A dissolução do registro imaginário exige que o sujeito empreenda um verdadeiro remanejamento de seu mundo, o que é viabilizado pelo delírio. Entretanto, a produção da metáfora delirante por parte do sujeito psicótico mostra a insistência da ordem simbólica. É, portanto, uma forma de estabilização, ou seja, um modo de lidar com o real, possibilitando que o sujeito volte a se relacionar com os objetos mesmo que de uma forma persecutória. Com essa indicação, Lacan sublinha que o sujeito psicótico é capaz de criar saídas possíveis para o encontro traumático (Lacan, 1955-56 pg. 107-108).
            Essas questões serão retomadas posteriormente no seminário 5 – As formações do inconsciente – onde Lacan, (1957-58), explica que o significante Nome-do-pai funciona como um “pai simbólico”, ou seja, ele é um significante que introduz a lei, no sentido de que o objeto do desejo foi interditado para o sujeito desde as suas origens. Afirma que na neurose, o recalque é que permite que a cadeia significante continue a se deslocar. No caso da psicose, entretanto, é outra coisa, é Verwerfung, aponta Lacan:

Pode haver, na cadeia dos significantes, um significante ou uma letra que falta, que sempre falta na tipografia. O espaço do significante, o espaço do inconsciente, é realmente um espaço tipográfico, que é preciso tratar de definir como se constituindo de acordo com linhas e pequenos quadrados e corresponde a lei topológicas. Pode faltar alguma coisa numa cadeia dos significantes. Vocês precisam compreender a importância da falta desse significante especial do qual acabo de falar, o Nome-do-pai, no que ele funda como tal o fato de existir a lei, ou seja, a articulação numa certa ordem do significante – complexo de Édipo, ou lei do Édipo, ou lei da proibição da mãe. Ele é o significante que significa que, no interior desse significante, o significante existe. (Lacan, 1957-58 pg. 153).

            A partir dessas considerações, concluímos que nos primeiros anos de seu percurso, Lacan relaciona a eclosão da psicose à ausência de inscrição do significante Nome-do-Pai, o significante primordial que estrutura o sujeito e que o insere na lei.  Entretanto, a noção de Nome-do-pai adquirirá, no rastro da obra lacaniana, novos contornos à medida que suas pesquisas a respeito das psicoses avançam na direção de tentar estabelecer uma direção clínica possível para o tratamento das psicoses. Essas questões não serão abordadas aqui, mas talvez, em outro momento, passamos avançar nossa pesquisa nessa direção.

 Referencias

FREUD, S. (1914) Sobre o narcisismo: uma introdução. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
_________ (1921) Psicologia de grupo e análise do eu. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
_________ (1924) A perda da realidade na neurose e na psicose. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
LACAN, J. (1955-56) O Seminário – livro 3 – As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
LACAN, J. (1957-58) O Seminário livro 5 As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
LACAN, J. (1959-60) O Seminário livro 7 A Ética da Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
LACAN, J. (1961-62) O Seminário livro 9 La identificación. Edição eletrônica das Obras de Jacques Lacan em espanhol.
LEITE, Sonia. A Verwerfung e algumas soluções possíveis. No prelo.
QUINET, Antonio. Teoria e clínica da psicose. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 2011.
SOLER, Colette. O inconsciente a céu aberto na psicose. Rio de Janeiro: Zahar. 2007.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Por favor deixe o seu recado para Joana Souza, psicanalista e palestrante.