sexta-feira, 29 de março de 2013

Melancolia: a identificação em questão


         O interesse de Freud pela melancolia aparece desde cedo em suas correspondências com Fliess. Observamos que no manuscrito G, enviado a Fliess provavelmente em 1895, a correspondência entre a melancolia e o afeto do luto já era concebida por Freud. Coloca que, em ambos os casos, o desejo de recuperar algo que foi perdido coloca-se como a causa desses estados, entretanto afirma que a melancolia consiste de uma perda na vida pulsional, ou seja, perda de libido[1]. Posteriormente, a introdução da teoria do narcisismo e da noção de ideal do eu, permitirá que Freud retome a questão da Melancolia, dando-lhe novos contornos.
            As relações entre o eu e o objeto perdido será o eixo central do texto “Luto e melancolia” publicado em 1917, em que Freud empreende uma correlação entre o estado normal de luto e a melancolia. Nesse texto, Freud nos apresenta a melancolia como um quadro em que o eu é grandemente modificado pelas identificações.
            Freud reitera que tanto o luto quanto a melancolia constituem-se como uma “reação” a perda de um objeto. No luto esse objeto pode ser tanto uma pessoa amada, como as abstrações colocadas em seu lugar, tais como a pátria, a liberdade ou até mesmo um ideal. Nesse estado, o eu o é absorvido por um estado de ânimo doloroso que ocasiona a perda do interesse pelo mundo exterior, salvo por aquilo que relembra a pessoa amada. No luto a realidade parece passar por um esvaziamento, o que exige que um trabalho seja feito. Mas, em que consiste o trabalho de luto? É a pergunta que Freud se faz.

Acho que não parecerá forçado apresentá-lo da seguinte forma: o teste de realidade mostrou que o objeto amado não mais existe, de modo que o respeito pela realidade passa a exigir a retirada de toda a libido das relações anteriormente mantidas com esse objeto.[2]

            No trabalho de luto a perda do objeto deve ser confirmada através do teste de realidade, mas nesse processo faz-se necessário retirar toda a libido nele investida, o que não é feito sem que haja uma resistência por parte do eu.  O ser humano, indica Freud, nunca abandona de bom grado uma posição libidinal antes ocupada, sendo que a recusa, em certos casos, opera uma fuga da realidade e a relação com o objeto é mantida por meio de uma psicose alucinatória. O que é esperado é que a realidade saia vitoriosa desse embate e que o eu, ao completar o trabalho de luto, se torne novamente livre e sem inibições. [3]
            A melancolia apresenta características similares às do luto, tais como o estado de ânimo doloroso, a suspensão do interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de amar e a inibição geral para realizar tarefas. Mas, além desses traços, Freud distingue na melancolia um outro traço que não está presente no luto: a depreciação do sentimento-de-Si. Na melancolia, a questão é um pouco mais complexa que no luto, pois a perda nem sempre se relaciona com a morte do objeto, sendo, muitas vezes de natureza ideal, como nos casos em que relações amorosas são rompidas. Na melancolia o objeto perdeu-se como objeto de amor. Freud salienta que mesmo nos casos em que a perda tenha de fato ocorrido, o sujeito pode ter clareza de quem ele perdeu, mas não o que perdeu no objeto amado desaparecido. Assim, na melancolia, diferentemente do luto, a perda do objeto escapa à consciência, não sendo possível identificar no mundo exterior uma razão para essa perda. Freud afirma: No luto, o mundo tornou-se pobre e vazio; na melancolia, foi o próprio eu que se empobreceu.[4] O empobrecimento do eu, característico da melancolia se revela através da depreciação do sentimento-de-Si e nas recriminações e insultos dirigidos a si mesmo, que quase sempre se transforma numa expectativa delirante de ser punido. Essas reações são na verdade conseqüências do trabalho psíquico que consome o eu e que se assemelha ao trabalho do luto.
            A melancolia revela dois fatos importantes a respeito do eu humano. O primeiro diz respeito ao fato de que nessa afecção, uma parte do eu do paciente se contrapõe à outra e a avalia de forma crítica. Em outros termos, uma parcela do eu trata a outra como se fosse um objeto. A consciência moral[5], nome dado por Freud a essa instância crítica distinta do eu, está, juntamente com a censura e o teste de realidade, entre as grandes instituições do eu. A melancolia, portanto, ressalta a ação dessa instancia critica que constantemente desaprova o eu e lhe impõe as mais severas recriminações. As auto-recriminações presentes na melancolia são recriminações dirigidas a um objeto amado, as quais foram retiradas desse objeto e desviadas para o eu. [6]
            O segundo ponto destacado por Freud, e que julgamos ter especial importância, é o fato de que na melancolia um investimento objetal é substituído por uma identificação. Nesse ponto, a questão das transformações produzidas no eu pelas identificações, passam a ser consideradas como sendo a uma característica peculiar da melancolia. O que as identificações podem revelar a respeito das relações entre o eu e a realidade?
            Freud considera:

A libido então liberada, em vez de ser transferida a outro objeto, foi recolhida para dentro do eu. Lá essa libido não foi utilizada para uma função qualquer, e sim para produzir uma identificação do eu com o objeto que tinha sido abandonado. Assim, a sombra o objeto caiu sobre o eu. (...) a perda do objeto transformou-se em uma perda de aspectos do eu, e o conflito entre o eu e a pessoa amada transformou-se num conflito entre a crítica ao eu e o eu modificado pela identificação.[7]

            Como vimos, em nossa abordagem acerca do narcisismo, a identificação é um processo que viabiliza a constituição do eu humano. De acordo com Freud, a forma tomada pelo eu será determinada pela sobreposição de investimentos objetais abandonados e transformados em identificações. Em outros termos, o eu se identifica a determinados traços dos objetos e os incorpora. Em “Luto e Melancolia” Freud, ratificando sua posição afirma que a identificação é o estágio que antecede a escolha de objeto.[8] É importante lembrar, que Freud só chegou a essas conclusões a respeito do eu humano por meio da análise das patologias narcísicas, dentre elas, a melancolia.
            Uma forte fixação no objeto e, por outro lado, um fraco investimento neste, seriam a precondição para que, na melancolia, a libido regrida para o eu. Acontece que, toda escolha objetal é narcísica, ou seja, o eu se liga a determinadas características do objeto que lhe dão a indicação da possibilidade de obter algum prazer. Na melancolia o eu, quando se vê diante de obstáculos enfraquece o investimento no objeto, e quando esse objeto é perdido a libido, ao invés de ser direcionada para outro objeto, regride para o eu. Como vimos, não há uma substituição do objeto amado, por isso Freud afirma que na melancolia o eu incorpora determinado aspecto do objeto por meio da identificação. Esses pontos levam a conclusão de que a melancolia é, como no luto, uma reação a uma perda real do objeto amado.[9]
            Como vimos anteriormente, no luto o eu consegue libertar-se do objeto perdido, passando a re-investir a libido em outros objetos. O trabalho do luto consiste em que o eu faça o teste de realidade até que, pouco a pouco, aceite que o objeto amado não existe mais. Mesmo que haja durante o processo de luto, um afrouxamento com a realidade, esta, gradativamente, vai sendo reconduzida à sua normalidade. Freud considera que na melancolia um processo semelhante é efetuado pelo eu, mas destaca que ainda não havia chegado a uma compreensão a respeito desse processo. O que se verifica é a ocorrência de um esvaziamento do eu na melancolia, fato que pode indicar um afrouxamento de seus vínculos com a realidade. É possível que as auto-acusações e a auto-depreciação, enquanto expressões da ambivalência que é própria à melancolia, evidenciem o esforço que é empreendido pelo eu para se livrar desse objeto por ele incorporado. A tendência ao suicídio, tão presente nos melancólicos, pode ser explicada por essa via, pois a morte do eu corresponde à morte do próprio objeto.[10]
            Por fim, Freud chega à conclusão de que, apesar de a melancolia apresentar aspectos que se assemelham ao luto, tais como a perda do objeto e a ambivalência, a pré-condição própria à melancolia seriam as autodepreciações que são na verdade, dirigidas ao objeto, o que aponta para o fato de uma ausência de mediação simbólica em relação ao objeto.

Obs.: Esse texto compõe parte de minhas pesquisas a cerca do eu em Freud e Lacan tema de minha dissertação de mestrado no UERJ. Portanto, qualquer pessoa pode citá-lo desde que mencione a fonte.



[1] Idem. Manuscrito G: Melancolia. Vol. I pg. 247.
[2] Idem. Luto e Melancolia. Vol. XIV pg. 250.
[3] Ibidem pg.251.
[4] Ibidem pg. 251.
[5] Em Psicologia de grupo e análise do eu, Freud chama essa instancia crítica de supereu.
[6] Ibidem pg.253.
[7] Ibidem pg.254.
[8] Ibidem pg. 255.
[9] Ibidem pg. 255.
[10] Ibidem pg. 257.

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