domingo, 26 de maio de 2013

Sobre a transitoriedade - Sigmund Freud

            Não faz muito tempo empreendi, num dia de  verão, uma caminhada através de  campos sorridentes na companhia de um amigo  taciturno e de um poeta  jovem mas  já  famoso. O poeta admirava a beleza do cenário à nossa volta, mas não extraía disso qualquer alegria. Perturbava-o o pensamento de que toda aquela beleza estava fadada à extinção, de que desapareceria quando sobreviesse o  inverno, como  toda a beleza humana e  toda a beleza e esplendor que os homens criaram ou poderão  criar. Tudo aquilo que, em outra  circunstância, ele  teria amado e admirado, pareceu-lhe despojado de seu valor por estar fadado à transitoriedade.
            A  propensão  de  tudo  que  é  belo  e  perfeito  à  decadência,  pode,  como  sabemos,  dar margem a dois  impulsos diferentes na mente. Um  leva ao penoso desalento  sentido pelo  jovem poeta, ao passo que o outro conduz à  rebelião contra o  fato consumado. Não! É  impossível que toda essa beleza da Natureza e da Arte, do mundo de nossas  sensações e do mundo externo, realmente  venha  a  se  desfazer  em  nada.  Seria  por  demais  insensato,  por  demais  pretensioso acreditar nisso. De uma maneira ou de outra essa beleza deve ser capaz de persistir e de escapar a todos os poderes de destruição.
            Mas  essa  exigência  de  imortalidade,  por  ser  tão  obviamente  um  produto  dos  nossos desejos,  não  pode  reivindicar  seu  direito  à  realidade;  o  que  é  penoso  pode,  não  obstante,  ser verdadeiro.  Não  vi  como  discutir  a  transitoriedade  de  todas  as  coisas,  nem  pude  insistir  numa exceção  em  favor  do  que  é  belo  e  perfeito.  Não  deixei,  porém,  de  discutir  o  ponto  de  vista pessimista do poeta de que a transitoriedade do que é belo implica uma perda de seu valor. Pelo contrário,  implica um aumento! O valor da  transitoriedade é o valor da escassez no tempo.  A  limitação  da  possibilidade  de  uma  fruição  eleva  o  valor  dessa  fruição.  Era incompreensível,  declarei,  que  o  pensamento  sobre  a  transitoriedade  da  beleza  interferisse  na alegria que dela derivamos. Quanto à beleza da Natureza, cada vez que é destruída pelo inverno, retorna no ano seguinte, do modo que, em relação à duração de nossas vidas, ela pode de fato ser considerada eterna. A beleza da forma e da face humana desaparece para sempre no decorrer de nossas próprias vidas; sua evanescência, porém, apenas lhes empresta renovado encanto. Uma flor que dura apenas uma noite nem por isso nos parece menos bela. Tampouco posso compreender melhor  por  que  a  beleza  e  a  perfeição  de  uma  obra  de  arte  ou  de  uma  realização  intelectual
deveriam perder seu valor devido à sua limitação temporal. Realmente, talvez chegue o dia em que os  quadros  e  estátuas  que  hoje  admiramos  venham  a  ficar  reduzidos  a  pó,  ou  que  nos  possa suceder uma  raça de homens que venha a não mais compreender as obras de nossos poetas e pensadores, ou talvez até mesmo sobrevenha uma era geológica na qual cesse toda vida animada sobre a Terra; visto, contudo, que o valor de toda essa beleza e perfeição é determinado somente por  sua  significação  para  nossa  própria  vida  emocional,  não  precisa  sobreviver  a  nós, independendo, portanto, da duração absoluta.
            Essas  considerações  me  pareceram  incontestáveis,  mas  observei  que  não  causara impressão  quer  no  poeta  quer  em meu  amigo. Meu  fracasso  levou-me  a  inferir  que  algum  fator emocional poderoso se achava em ação, perturbando-lhes o discernimento, e acreditei, depois, ter descoberto o que era. O que lhes estragou a fruição da beleza deve ter sido uma revolta em suas mentes  contra  o  luto.  A  idéia  de  que  toda  essa  beleza  era  transitória  comunicou  a  esses  dois espíritos  sensíveis  uma  antecipação  de  luto  pela morte  dessa mesma  beleza; e,  como  a mente instintivamente  recua  de  algo  que  é  penoso,  sentiram  que  em  sua  fruição  de  beleza  interferiam pensamentos sobre sua transitoriedade.
            O luto pela perda de algo que amamos ou admiramos se afigura tão natural ao leigo, que ele  o  considera  evidente  por  si mesmo.  Para  os  psicólogos,  porém,  o  luto  constitui  um  grande enigma, um daqueles fenômenos que por si sós não podem ser explicados, mas a partir dos quais podem  ser  rastreadas  outras  obscuridades.  Possuímos, segundo parece, certa  dose  de capacidade para o amor - que denominamos de libido - que nas etapas iniciais do desenvolvimento é dirigido no sentido de nosso próprio ego. Depois, embora ainda numa época muito  inicial, essa libido é desviada do ego para objetos, que são assim, num certo sentido, levados para nosso ego. Se os objetos  forem destruídos ou se  ficarem perdidos para nós, nossa capacidade para o amor (nossa  libido)  será mais uma  vez  liberada e poderá então ou  substituí-los por outros objetos ou retornar  temporariamente ao ego.
            Mas permanece um mistério para nós o motivo pelo qual esse desligamento  da  libido  de  seus  objetos  deve  constituir  um  processo  tão  penoso,  até  agora  não fomos capazes de formular qualquer hipótese para explicá-lo. Vemos apenas que a libido se apega a seus objetos e não  renuncia àqueles que se perderam, mesmo quando um substituto se acha bem à mão. Assim é o luto.
            Minha palestra com o poeta ocorreu no verão antes da guerra. Um ano depois, irrompeu o conflito  que  lhe  subtraiu  o mundo  de  suas  belezas. Não  só  destruiu  a  beleza  dos  campos  que atravessava e as obras de arte que encontrava em seu caminho, como  também destroçou nosso orgulho pelas realizações de nossa civilização, nossa admiração por numerosos filósofos e artistas, e nossas esperanças quanto a um  triunfo final sobre as divergências entre as nações e as raças. Maculou a elevada imparcialidade da nossa ciência, revelou nossos instintos em toda a sua nudez e soltou de dentro de nós os maus espíritos que julgávamos terem sido domados para sempre, por séculos de  ininterrupta educação pelas mais nobres mentes. Amesquinhou mais uma vez nosso
país  e  tornou  o  resto  do  mundo  bastante  remoto.  Roubou-nos  do  muito  que  amáramos  e mostrou-nos quão efêmeras eram inúmeras coisas que consideráramos imutáveis.
            Não pode surpreender-nos o  fato de que nossa  libido, assim privada de  tantos dos seus objetos, se tenha apegado com intensidade ainda maior ao que nos sobrou, que o amor pela nossa pátria, nossa afeição pelos que se acham mais próximos de nós e nosso orgulho pelo que nos é comum, subitamente se  tenham  tornado mais vigorosos. Contudo, será que aqueles outros bens, que  agora  perdemos,  realmente  deixaram  de  ter  qualquer  valor  para  nós  por  se  revelarem  tão perecíveis  e  tão  sem  resistência?  Isso  parece  ser  o  caso  de muitos  de  nós;  só  que,  na minha opinião, mais uma vez, erradamente. Creio que aqueles que pensam assim, de e parecem prontos a  aceitar  uma  renúncia  permanente  porque  o  que  era  precioso  revelou  não  ser  duradouro, encontram-se simplesmente num estado de  luto pelo que se perdeu. O  luto, como sabemos, por mais  doloroso  que  possa  ser,  chega  a  um  fim  espontâneo.  Quando  renunciou  a  tudo  que  foi perdido, então  consumiu-se a  si próprio, e nossa  libido  fica mais uma  vez  livre  (enquanto ainda formos  jovens e ativos) para substituir os objetos perdidos por novos  igualmente, ou ainda mais, preciosos.  É  de  esperar  que  isso  também  seja  verdade  em  relação  às  perdas  causadas  pela presente guerra. Quando o luto tiver terminado, verificar-se-á que o alto conceito em que tínhamos as riquezas da civilização nada perdeu com a descoberta de sua fragilidade. Reconstruiremos tudo o que a guerra destruiu, e talvez em terreno mais firme e de forma mais duradoura do que antes.

Referência:
FREUD, Sigmund. Sobre a transitoriedade in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XIV. Rio de Janeiro:Imago.

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