O interesse de Freud pela melancolia aparece desde
cedo em suas correspondências com Fliess. Observamos que no manuscrito G,
enviado a Fliess provavelmente em 1895, a correspondência entre a melancolia e
o afeto do luto já era concebida por Freud. Coloca que, em ambos os casos, o
desejo de recuperar algo que foi perdido coloca-se como a causa desses estados,
entretanto afirma que a melancolia consiste de uma perda na vida pulsional, ou
seja, perda de libido[1].
Posteriormente, a introdução da teoria do narcisismo e da noção de ideal do eu, permitirá que Freud retome a
questão da Melancolia, dando-lhe novos contornos.
As
relações entre o eu e o objeto
perdido será o eixo central do texto “Luto e melancolia” publicado em 1917, em
que Freud empreende uma correlação entre o estado normal de luto e a
melancolia. Nesse texto, Freud nos apresenta a melancolia como um quadro em que
o eu é grandemente modificado pelas
identificações.
Freud
reitera que tanto o luto quanto a melancolia constituem-se como uma “reação” a
perda de um objeto. No luto esse objeto pode ser tanto uma pessoa amada, como
as abstrações colocadas em seu lugar, tais como a pátria, a liberdade ou até
mesmo um ideal. Nesse estado, o eu o
é absorvido por um estado de ânimo doloroso que ocasiona a perda do interesse
pelo mundo exterior, salvo por aquilo que relembra a pessoa amada. No luto a
realidade parece passar por um esvaziamento, o que exige que um trabalho seja
feito. Mas, em que consiste o trabalho de luto? É a pergunta que Freud se faz.
Acho que não parecerá forçado apresentá-lo da seguinte
forma: o teste de realidade mostrou que o objeto amado não mais existe, de modo
que o respeito pela realidade passa a exigir a retirada de toda a libido das
relações anteriormente mantidas com esse objeto.[2]
No trabalho de luto a perda do
objeto deve ser confirmada através do teste de realidade, mas nesse processo
faz-se necessário retirar toda a libido nele investida, o que não é feito sem
que haja uma resistência por parte do eu. O ser humano, indica Freud, nunca abandona de
bom grado uma posição libidinal antes ocupada, sendo que a recusa, em certos
casos, opera uma fuga da realidade e a relação com o objeto é mantida por meio
de uma psicose alucinatória. O que é esperado é que a realidade saia vitoriosa desse
embate e que o eu, ao completar o
trabalho de luto, se torne novamente livre e sem inibições. [3]
A
melancolia apresenta características similares às do luto, tais como o estado
de ânimo doloroso, a suspensão do interesse pelo mundo externo, perda da
capacidade de amar e a inibição geral para realizar tarefas. Mas, além desses
traços, Freud distingue na melancolia um outro traço que não está presente no
luto: a depreciação do sentimento-de-Si. Na melancolia, a questão é um pouco
mais complexa que no luto, pois a perda nem sempre se relaciona com a morte do
objeto, sendo, muitas vezes de natureza ideal, como nos casos em que relações
amorosas são rompidas. Na melancolia o objeto perdeu-se como objeto de amor.
Freud salienta que mesmo nos casos em que a perda tenha de fato ocorrido, o
sujeito pode ter clareza de quem ele perdeu, mas não o que perdeu no objeto
amado desaparecido. Assim, na melancolia, diferentemente do luto, a perda do
objeto escapa à consciência, não sendo possível identificar no mundo exterior
uma razão para essa perda. Freud afirma: No
luto, o mundo tornou-se pobre e vazio; na melancolia, foi o próprio eu que se
empobreceu.[4] O
empobrecimento do eu, característico
da melancolia se revela através da depreciação do sentimento-de-Si e nas
recriminações e insultos dirigidos a si mesmo, que quase sempre se transforma
numa expectativa delirante de ser punido. Essas reações são na verdade
conseqüências do trabalho psíquico que consome o eu e que se assemelha ao trabalho do luto.
A
melancolia revela dois fatos importantes a respeito do eu humano. O primeiro diz respeito ao fato de que nessa afecção,
uma parte do eu do paciente se
contrapõe à outra e a avalia de forma crítica. Em outros termos, uma parcela do
eu trata a outra como se fosse um
objeto. A consciência moral[5],
nome dado por Freud a essa instância crítica distinta do eu, está, juntamente com a censura e o teste de realidade, entre as
grandes instituições do eu. A
melancolia, portanto, ressalta a ação dessa instancia critica que
constantemente desaprova o eu e lhe
impõe as mais severas recriminações. As auto-recriminações presentes na
melancolia são recriminações dirigidas a um objeto amado, as quais foram
retiradas desse objeto e desviadas para o eu.
[6]
O
segundo ponto destacado por Freud, e que julgamos ter especial importância, é o fato de que na melancolia um investimento
objetal é substituído por uma identificação. Nesse ponto, a questão das
transformações produzidas no eu pelas
identificações, passam a ser consideradas como sendo a uma característica
peculiar da melancolia. O que as identificações podem revelar a respeito das
relações entre o eu e a realidade?
Freud
considera:
A libido então liberada, em vez de ser transferida a outro objeto, foi recolhida para dentro do eu. Lá essa libido não foi utilizada para uma função qualquer, e sim para produzir uma identificação do eu com o objeto que tinha sido abandonado. Assim, a sombra o objeto caiu sobre o eu. (...) a perda do objeto transformou-se em uma perda de aspectos do eu, e o conflito entre o eu e a pessoa amada transformou-se num conflito entre a crítica ao eu e o eu modificado pela identificação.[7]
Como
vimos, em nossa abordagem acerca do narcisismo, a identificação é um processo que
viabiliza a constituição do eu humano. De acordo com Freud, a forma tomada
pelo eu será determinada pela
sobreposição de investimentos objetais abandonados e transformados em
identificações. Em outros termos, o eu
se identifica a determinados traços dos objetos e os incorpora. Em “Luto e
Melancolia” Freud, ratificando sua posição afirma que a identificação é o
estágio que antecede a escolha de objeto.[8]
É importante lembrar, que Freud só chegou a essas conclusões a respeito do eu humano por meio da análise das
patologias narcísicas, dentre elas, a melancolia.
Uma
forte fixação no objeto e, por outro lado, um fraco investimento neste, seriam
a precondição para que, na melancolia, a libido regrida para o eu. Acontece que, toda escolha objetal é
narcísica, ou seja, o eu se liga a
determinadas características do objeto que lhe dão a indicação da possibilidade
de obter algum prazer. Na melancolia o eu,
quando se vê diante de obstáculos enfraquece o investimento no objeto, e quando
esse objeto é perdido a libido, ao invés de ser direcionada para outro objeto,
regride para o eu. Como vimos, não há
uma substituição do objeto amado, por isso Freud afirma que na melancolia o eu incorpora determinado aspecto do
objeto por meio da identificação. Esses pontos levam a conclusão de que a
melancolia é, como no luto, uma reação a uma perda real do objeto amado.[9]
Como
vimos anteriormente, no luto o eu
consegue libertar-se do objeto perdido, passando a re-investir a libido em
outros objetos. O trabalho do luto consiste em que o eu faça o teste de realidade até que, pouco a pouco, aceite que o
objeto amado não existe mais. Mesmo que haja durante o processo de luto, um
afrouxamento com a realidade, esta, gradativamente, vai sendo reconduzida à sua
normalidade. Freud considera que na melancolia um processo semelhante é
efetuado pelo eu, mas destaca que
ainda não havia chegado a uma compreensão a respeito desse processo. O que se
verifica é a ocorrência de um esvaziamento do eu na melancolia, fato que pode indicar um afrouxamento de seus
vínculos com a realidade. É possível que as auto-acusações e a auto-depreciação,
enquanto expressões da ambivalência que é própria à melancolia, evidenciem o
esforço que é empreendido pelo eu
para se livrar desse objeto por ele incorporado. A tendência ao suicídio, tão
presente nos melancólicos, pode ser explicada por essa via, pois a morte do eu corresponde à morte do próprio
objeto.[10]
Por
fim, Freud chega à conclusão de que, apesar de a melancolia apresentar aspectos
que se assemelham ao luto, tais como a perda do objeto e a ambivalência, a
pré-condição própria à melancolia seriam as autodepreciações que são na verdade, dirigidas ao objeto, o que aponta para o fato de uma ausência de mediação simbólica em relação ao objeto.
Obs.: Esse texto compõe parte de minhas pesquisas a cerca do eu em Freud e Lacan tema de minha dissertação de mestrado no UERJ. Portanto, qualquer pessoa pode citá-lo desde que mencione a fonte.
[1]
Idem. Manuscrito G: Melancolia. Vol.
I pg. 247.
[2]
Idem. Luto e Melancolia. Vol. XIV pg.
250.
[3]
Ibidem pg.251.
[4]
Ibidem pg. 251.
[5] Em
Psicologia de grupo e análise do eu, Freud chama essa instancia crítica de
supereu.
[6]
Ibidem pg.253.
[7] Ibidem
pg.254.
[8]
Ibidem pg. 255.
[9]
Ibidem pg. 255.
[10]
Ibidem pg. 257.
O trabalho está rendendo, mana. Ótimo texto, muito elucidativo. Beijos!!!
ResponderExcluirObrigado querida... vamos que vamos...
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